quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Um pouquinho de Raul só pra lembrar


Uma queixa que o roqueiro baiano Raul Seixas (1945-1989) sempre fazia ao amigo Marco Mazolla - produtor de seus sete primeiros discos solos - era que os "outros" baianos sempre o renegaram. Sua mágoa recaía sobre Caetano Veloso e Gilberto Gil, principalmente, expoentes do movimento tropicalista. Havia uma birra entre eles desde o começo da década de 1960, quando a turma de Raul fazia do Cinema Roma ponto de efervescência do rock proletário local e a de Caetano se concentrava no Teatro Vila Velha, para tocar bossa nova. Os grupos se conheciam e se antipatizavam. O tempo passou, os tropicalistas se serviram do rock, só que o rancor ficou. Mas o isolamento a que Raul foi submetido se estendia a um universo bem mais amplo.
Não chega a ser estranho que a esquerda brasileira nunca tenha dado muita importância ao fato de ele ter pago um preço alto por confrontar a ditadura militar com seus hits em forma de hinos filosóficos e de contestação, casos de Ouro de Tolo, Metamorfose Ambulante e Mosca na Sopa. Numa época em que a vida política e cultural brasileira polarizou artistas e intelectuais entre os engajados e os alienados, Raul foi mandado para o limbo do segundo grupo. Apaixonado pelo rock americano, conheceu o ritmo na infância, influenciado pelos filhos de funcionários do consulado americano em Salvador. A ponto de incorporar a seu visual a jaqueta de couro e o topete de seu ídolo maior, Elvis Presley. Era uma veneração obsessiva.
O isolamento começou quando Let me sing my rock and roll quase ganhou a final no Festival Internacional da Canção de 1972, promovido pela Rede Globo. A música ficou em terceiro lugar e intercalava rock e baião, numa mistura que lhe rendeu boas vaias dos puristas e até risos dos tropicalistas, ao aparecer travestido de Elvis Presley. Como o próprio Raul insistiria depois, tudo não passou de encenação proposital para sair do anonimato. Na sua cabeça, porém, havia naquela mistura muitas similaridades entre os dois ritmos tão distantes.

Vivendo à margem

Embora tivesse construído a mais importante e singular discografia do rock nacional, pelas múltiplas tendências e influências que antecipou, Raul viveu à margem de um rígido sistema de promoção cultural intelectualizada comandado a mão de ferro pela esquerda, sempre de braços abertos para projetar seus simpatizantes. Coube a ele o papel de um estranho no ninho, sem classificação, sem tribo, sem a ovação dos opositores ao regime militar. Para piorar, no auge de sua popularidade, gravou dois discos para homenagear o rock americano: 30 Anos de Rock (1973) e Raul Rock Seixas (1977).
A história das vítimas da repressão militar também deve um capítulo especial ao roqueiro. Em 1974, Raul foi preso no Aterro do Flamengo. Encapuzado, ficou três dias num local desconhecido sob interrogatório até concordar em deixar o Brasil por causa do sucesso Sociedade Alternativa, interpretada como uma apologia à subversão. Foi conduzido até o aeroporto para embarque imediato. Viveria o mesmo calvário dos exilados mais famosos, como Caetano, Gil e Chico Buarque. Vagou sem rumo em Nova York até ser salvo pela explosão de Gita, que, gravada antes de deixar o país, vendera respeitáveis 600 mil cópias. A gravadora Phillips havia convencido os militares a permitirem sua volta.
Por outro lado, a solidão e a falta de compromisso com grupos ou turmas parecem ter dado a Raul liberdade para trilhar um caminho próprio numa década de trevas para o rock nacional, marcada por fracassos de bandas que embarcaram no delirante rock progressivo. Se não criou um movimento musical ou deixou seguidores isso se deve à singularidade de sua obra. Os quatro discos solo que gravou para a Phillips - Krig-há, Bandolo! (1973), Gita (1974), Novo Aeon (1975) e Há dez mil anos atrás (1976) - antecipam tudo o que de mais importante aconteceu no gênero nos 30 anos seguintes: do rock militante e político do Legião Urbana, Capital Inicial, Plebe Rude, Camisa de Vênus e Cazuza, ao conflitos existencialistas das grandes cidades, como Ira!; sem esquecer a safadeza política e erótica do Ultraje a Rigor. Contribuiu ainda com a fusão do rock com ritmos nordestinos, que ninguém entendeu em 1972, mas aplaudiu em Chico Science - influência, aliás, que, remanescente de sua banda Nação Zumbi, exorcizam com certa arrogância.
E são esses quatro álbuns que voltam agora na merecida caixa Maluco Beleza, da gravadora Universal, que inclui várias faixas bônus, algumas inéditas - como a belíssima versão alternativa de Ouro de Tolo -, mais um livreto com fotos nunca antes divulgadas, principalmente da infância e adolescência. Completam o pacote os dois discos com covers de clássicos americanos do rock’n roll realizados na mesma época. Os encartes foram refeitos com novas fotos.

Ousadia e caos

Krig-há, Bandolo! , na verdade, foi o terceiro disco de Raul. A estréia aconteceu com Raulzito e Os Panteras, de 1968, com canções nada originais dentro da fórmula da Jovem Guarda. Com o fracasso, Raul teve uma bem-sucedida carreira como produtor da CBS (Sony), de 1970 a 1972, além de compositor de grandes sucessos populares como Doce, Doce Amor (Jerry Adriany), Lágrimas nos Olhos (José Roberto) e Sha-La-la (Leno). O álbum seguinte foi o ousado, caótico e experimental Sociedade Grã-Ordem da Kavernista apresenta Sessão das 10, de 1971, realizado sem autorização da gravadora.
Suas dez faixas misturavam chorinho, brega, rock, tudo com muito escracho, humor e visual hippie, fortemente influenciado por Frank Zappa e Beatles. Das 30 canções, só oito passaram pela censura. Uma delas, surpreendemente, foi a irônica Todo Mundo tá Feliz, de Sampaio. A idéia era expressar o que Raul chamou de "caos bonitinho" da época e tinha a pretensão de "revolucionar" o rock brasileiro. O músico e produtor formou um quarteto com os desconhecidos Sérgio Sampaio, Miriam Batucada e Edy Star. Ao contrário do que se diz, ele não foi demitido por isso, mas o álbum acabou recolhido das lojas. Pouco depois, deixou a CBS para ganhar o dobro do salário na RCA Victor.A gênese da virada da militância de Raul estava num disco anterior, gravado entre dezembro de 1970 e janeiro de 1971, que ainda permanece como o elo perdido do rock nacional. Trata-se de Vida e Obra de Johnny McCartney, de Leno, da dupla Lilian & Leno. O álbum teve seis das suas 12 faixas vetadas pela censura e ficou inédito por 23 anos. Somente em 1994, o pesquisador Marcelo Fróes encontrou os tapes originais que Leno acreditava destruídos, como fora dito pela gravadora. No ano seguinte, saiu em CD, numa tiragem de apenas duas mil cópias. Já seria um disco histórico por ter sido o primeiro gravado em oito canais no Brasil - o máximo em tecnologia na época. Leno vivia seu melhor momento como cantor romântico e suas vendas lhe deram o privilégio de inaugurar o equipamento importado pela gravadora.
Leno, então, pretendia reformular sua carreira e decidiu trocar a canção romântica fácil pelo rock mais "experimental". Raul entrou no projeto quando o amigo lhe pediu para terminar a letra de Sentado à beira do arco-íris. Virou produtor e não demorou para que compusessem um repertório de rock’n’roll e rock pesado. O problema estava nas letras que falavam de LSD, violência policial e até criticavam o presidente Médici. A censura vetou Sentado à beira do arco-íris, sobre reforma agrária, a primeira a ser vetada. Pobre do Rei, dos irmãos Marcos e Paulo Sérgio Valle, foi interpretada como uma homenagem a João Goulart. Por que não? também criticava o regime militar. A satírica Sr. Imposto de Renda seguia o caminho da antológica Não há lei em Grilo City, uma provocação contra a censura. Com o veto das músicas, só foi possível fazer compacto duplo com quatro músicas. Sem divulgação, não vendeu mais que 15 mil cópias.

Parceria com Paulo Coelho

O conceito do disco abortado seria a base para Kriga-há, Bandolo, o melhor e mais importante do rock nacional. Veio precedido do compacto com Let me sing my rock’n’roll e Ouro de Tolo, o primeiro grande hit interpretado por ele, cujo disquinho chegou a ser prensado duas vezes em uma semana. O LP foi composto em parte pela parceria com Paulo Coelho, um jornalista que colaborava com a imprensa alternativa - seus artigos saíam em revistas como A Pomba, Rolling Stone e 2001. Um desses textos, sobre discos voadores, aproximou os dois e renderia muitos sucessos, alguns discos e conflitos de personalidades. O álbum misturava existencialismo com inconformismo político que Raul negaria por toda a vida, provavelmente por orgulho ou mágoa pela indiferença que a esquerda lhe dedicou.
A principal influência de Raul nesse momento foi o livro 1984, do escritor inglês George Orwell (1903-1950), célebre romance de ficção científica que mostra a opressão num regime totalitário - bem atual naquele momento. Ao mesmo tempo, trazia a aproximação da dupla dos estudos esotéricos, com ênfase para a obra do mago inglês Aleister Crowley. O mais representativo do disco, sem dúvidas, eram as faixas da autoria exclusiva de Raul, quase todas de abordagem política. Ouro de Tolo, Mosca na Sopa e Metamorfose Ambulante trouxeram o profundo senso de contestação do compositor nos seus mais amplos sentidos, com ênfase contra o conformismo e o individualismo da classe média urbana diante do estado das coisas imposto pela ditadura militar.
Trata-se de álbum próximo do conceitual, com temas que simbolizavam uma guinada na abordagem roqueira tupiniquim semelhante ao que Bob Dylan fez nos Estados Unidos dez anos antes, em defesa de um explícito engajamento político. Ainda emplacou o sucesso Al Capone. A libertária "Metamorfose Ambulante" falava de seu isolamento intelectual na música, anunciava a conscientização e funcionava como uma irônica resposta ao desprezo da esquerda. Na época, porém, sua letra permitia interpretações dúbias: "Eu prefiro ser essa metamorfose ambulante do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo." A filosófica e moderna Ouro de Tolo criticava o conformismo, as benesses do milagre brasileiro e dizia que a vida era bem mais que isso de ficar sentado no trono (vaso sanitário) de um apartamento, com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar. O rock-baião Mosca na Sopa, com seus poucos versos, permitia amplas interpretações e prenunciava que Raul chegara definitivamente para incomodar.

Influência hippie

O disco Gita é descrito por Mazolla como a consolidação da dupla Raul e Coelho. "Tinha muito do movimento hippie, com letras mais complexas, que exigiam muita informação para serem compreendidas." Também deu continuidade ao trabalho anterior. O flerte com o místico e o esotérico ganhou mais espaço. A política também se manteve forte. A militância aparece nas provocativas Super-heróis, As aventuras de Raul Seixas na Cidade de Thor, Sociedade Alternativa e Loteria da Babilônia, mais a bônus Não pare na pista. Uma das mais tocadas, S.O. S, seguiu a fórmula de Ouro de Tolo, ao falar de um entediado cidadão que não agüenta mais a mesmice do mundo e pedi socorro a um disco voador para que o leve do planeta. É ainda um disco que marca a aproximação de Raul com uma obsessão: a morte, que chega no Trem das Sete. Ao longo da carreira, mais de trinta composições suas falariam do tema. A mais radical delas saiu em Há dez mil anos, com a faixa Canto para minha morte, sobre a expectativa do encontro que parece breve.
O passo seguinte, Novo Aeon, prenunciou outras temáticas dominantes em seus trabalhos futuros: a loucura, o sarcasmo e a autoflagelação. Os exemplos mais diretos foram Eu sou egoísta e Paranóia, cujas letras refletem uma reação a comentários e críticas que recebeu e à experiência de Paulo Coelho quando foi internado pela família num hospital psiquiátrico. É um disco também otimista, no qual Raul não tem vergonha de soltar sua pieguice na estimulante Tente outra vez. Houve espaço para as faixas românticas, presentes nos trabalhos anteriores. O hit aqui foi Tu és o M.D.C. da minha vida, uma crítica ao elitismo cultural em forma de música brega.
Fantasiado de um velho imortal, o LP Há dez mil anos atrás trouxe um Raul polarizado entre a vida e a morte, mais existencialista e terrivelmente mórbido. Além de Canto para a minha morte, estabeleceu O dia da saudade e criou o hino a Iemanjá - uma das poucas referências que fez à Bahia. Nada disso, porém, modificou seu espírito irrequieto de não poupar ninguém à volta. E o fez bem com "Eu também vou reclamar", queixa contra os colegas que o copiaram em seus questionamentos.
Depois que saiu da Philips, ainda fez pelo menos mais três bons discos: O Dia em que a Terra Parou (Warner, 1977), Abre-te Sésamo (1980) e Panela do Diabo (1989), com Marcelo Nova. Consumidor voraz de gibis e literatura e filosofia desde a infância, Raul Seixas desenvolveu uma visão pessimista do mundo. Conhecia a fundo as correntes filosóficas e ideológicas, questionou as religiões organizadas e a existência de Deus. Tido como imprevisível, irresponsável, brigão com diretores de gravadoras, morreu vítima do álcool. Dizia que a desobediência era uma virtude necessária à criatividade. De maluco Raul Seixas não tinha nada.
Gonçalo JúniorInvestNews / Gazeta Mercantil

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